
Índices de violência de Salvador transformam a “cidade sorriso” em um verdadeiro campo de batalha. E os cemitérios públicos – o que denúncia também a condição socioeconômica das vítimas – são abarrotados de corpos com suas marcas. Familiares e pessoas próximas dão sequência ao horror, demonstrando sua dor em velórios cheios de revolta. São dez cemitérios da prefeitura e um do estado.
Os dois maiores deles são verdadeiros depositórios de vítimas de um tipo de violência que não encontra em seu chão um ponto final, mas um ponto a mais em um ciclo, que, sem aparente responsável, ao contrário de diminuir com o tempo, tem intensificado.
“Principalmente quando é funeral de pessoas envolvidas com a marginalidade. Seus conhecidos vêm armados e muitas vezes são agressivos; tumultuam, ameaçam e prometem vingança, em voz alta, do comparsa abatido. Eles precisam apontar um culpado e somos os primeiros”, narra Ricardo Luiz Lima, encarregado do Cemitério Municipal de Plataforma, o maior a cargo da prefeitura.
Ele conta ainda que há casos em que, além de uma conversa com um familiar que possa acalmar os ânimos dos grupos, a prudência pede que a polícia seja acionada. “Quando os primeiros começam a chegar e percebemos que estão drogados ou armados, ligamos para polícia, afinal nosso trabalho é enterrar os mortos e não lidar com os vivos”, ressalta.
Segundo o encarregado, o cemitério localizado no Subúrbio Ferroviário tem como principal causa da morte dos enterrados a violência, sendo a arma de fogo a principal ferramenta usada para ceifar as vidas. “Chegamos a receber entre dois e sete corpos por dia. Ao menos um deles é vítima de violência”. Essa média cresce muito nas terças e quartas-feiras, quando começam a chegar os corpos das vítimas dos fins de semana.
De acordo com Lima, os funerais de vítimas da violência, sejam elas supostamente culpadas ou inocentes, são diferentes. “Percebe-se uma dificuldade maior em aceitar o fato, talvez por ter sido uma vida que foi tirada pelas mãos de outra pessoa, que muitas vezes circula livre pela cidade”, pondera.
Indigentes – O metro quadrado com mais mortos pela violência em Salvador está no Cemitério de Quintas do Lazaro. Localizado na Baixa de Quintas, o único cemitério administrado pelo estado recebe a maioria dos corpos não reclamados no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IML). Segundo seu administrador, Manolo Dominguez, os indigentes compõem um dos dois tipos vítimas de violência que chegam ao cemitério. Este, ao contrário do outro, não causa nenhum problema para os funcionários.
“O outro tipo vem acompanhado de familiares e amigos, e eles nem sempre se comportam bem”, explica Rodrigues. “Há vezes em que temos que conviver até com salva de tiros para marginais. Assusta, principalmente para quem não está acostumado, mas para quem convive com isso, acaba sendo parte do trabalho”, acrescenta o administrador, que está há cinco anos no cargo.
Segundo ele, mesmo os que não causam tumultos se destacam daqueles que participam de velórios de pessoas que não foram vítimas de violência.
“São mais sofridos, mais zangados, o que é compreensível pelo fato de que em sua maioria estão velando por jovens assassinados a tiros, o que não é nada fácil de aceitar”, pondera.
O cemitério, fundado em 1785, é o que mais tem recebido este tipo de funeral na Bahia. É o que mais tem espaço destinado a indigentes e todo enterro efetuado no chão é gratuito. Só para indigentes são três quadras, cada uma com capacidade entre 200 e 300 corpos, que ficam enterrados por dois anos. Depois desse prazo, os ossos são cremados ou doados para escolas de medicina ou de biologia.
Mesmo fora da área de indigentes, que recebe uma média de dois corpos por dia do IML, boa parte do total de covas no chão, cerca de 12 %, são ocupadas por vítimas de violência. Entre eles, existem casos famosos como o do militante baiano Carlos Marighella, considerado inimigo do governo militar na década de 1960.
A lápide sobre seu túmulo é decorada com o contorno de um corpo cravejado por cinco balas e uma frase que podia estar sobre as covas de todas as outras vítimas de violência de Salvador: “Não tive tempo de ter medo”.
Carlos Vianna Junior REPÓRTER
Publicada: 03/05/2012 00:05| Atualizada: 02/05/2012 23:42